sábado, 25 de outubro de 2008

Idéias de Infâncias

A “infância” é uma categoria social que vem ganhando contornos e espaços diferentes ao longo dos séculos nas sociedades organizadas do mundo inteiro. Em sociedades da Europa da Idade Média, por exemplo, não havia grandes distinções sobre espaços públicos para crianças e sua educação era responsabilidade dos pais (geralmente das mães) e das demais pessoas que conviviam com elas. Não havia escolas nem áreas públicas dedicadas às diferentes faixas etárias que observassem as necessidades específicas de fruição e atividades sócio-culturais. Os trabalhos e divertimentos não tinham maiores especificidades no quesito “faixa etária”, e mesmo para aqueles que continham necessidades específicas relativas a força física ou a conteúdos de interesses mais “adultos” (como divertimentos sexuais, jogos de azar, lutas etc.) não havia algo que impedisse que crianças participassem dessas atividades, caso elas conseguissem executar tais tarefas, evidentemente. Inclusive, a idéia de divisões de fases era algo em que não se pensava na época. Por exemplo, não havia na língua francesa, até o século XVIII, termos que diferenciasse a infância da adolescência ou da juventude, como lembra Rinaldo Segundo, em seu artigo “A invenção da infância”:A palavra "enfant" (criança) representava, ambos, crianças ou rapazes. Isso pode ser explicado: não era o critério biológico que distinguia as pessoas, sendo que "ninguém teria a idéia de limitar a infância pela ‘puberdade’..." (ARIÈS, 1981, p. 42). A dependência econômica marcava a idéia de infância: "Só se saía da infância ao se sair da dependência" (idem). Daí a explicação à algumas imagens e relatos do século XVI, segundo os quais, aos 24 anos, a criança é forte e virtuosa. (SEGUNDO, 2003, § 11).Em outras sociedades até mais antigas, como a chinesa ou a grega, por exemplo, existia a figura do mestre ou preceptor, ou seja, alguém que cuidava para que a criança aprendesse conteúdos e atividades que as fizessem úteis à sociedade. Evidentemente eram poucos (só os filhos de pessoas de posse e/ou importância) que tinham essa “atenção específica”, pois a grande maioria vivia no meio dos adultos sem maiores “atenções especiais” além da educação familiar, como aprender o ofício dos pais para poderem continuar sobrevivendo, por exemplo. É importante frisar que, mesmo na China ou na Grécia antiga, não havia atividades de divertimento especificamente infantis, o que também não significa que não houvesse certas atividades que recebiam um público maior de crianças, como as apresentações de bonecos populares chineses (por volta do século III A.C.) ou a comédias farsescas gregas (século V A.C.).É certo que, em qualquer período, qualquer atividade artística pode cair no gosto de crianças, independente do interesse inicial do artista realizador da obra, por alguma característica involuntária, principalmente pelo fato de que não existe uma “criança ideal”, e sim crianças, todas com suas particularidades específicas. Cada pessoa, independente da faixa etária, tem características e gostos pessoais diferentes por diversos motivos: sociais, culturais, relacionais etc. No entanto, existem fatores que diferenciam diversos grupos sociais que são separadas por vários fatores e a idade é uma delas.Na sociedade européia ocidental, no período do renascimento, quando a cultura passou a ser menos da igreja e um pouco mais da sociedade civil, tentativas de especificar atitudes frente às crianças tornavam-se mais urgentes, até mesmo para limitar o espaço da criança no “mundo adulto” e também educar esse ser que era visto mais como um “futuro adulto” do que como pessoa em si. É nessa situação que os tratados sobre a educação da puerícia (infância) começam a aparecer. O historiador francês Philippe Ariès (1914-1984), em seu livro “História Social da Criança e da Família”, de 1960, faz um panorama de alguns desses tratados e de que como era vista a infância na Europa (especificamente na França) na Idade Média - sem maiores distinções entre a infância e a idade adulta - e a partir do final do século XVI – quando a necessidade de uma educação burguesa se fazia cada vez mais presente para a manutenção do estado de dominação da civilização européia ocidental. Ariès foi a grande referência de um novo campo historiográfico, que ficou conhecido como “história da infância” e gerou diversos trabalhos posteriores de outros estudiosos dessa área, pois, além de trazer à tona uma discussão sobre a história da infância na Europa – desde a Idade Média, passando pelos tratados filosóficos e manuais de educação e etiqueta da infância (séculos XVI a XVIII) até os estudos do século XIX e princípio do XX – ele cria uma base na qual historiadores, psicólogos, sociólogos e educadores irão se apoiar (inclusive os críticos) para pensar a infância contemporânea.Nos fazeres e na fruição artística também não é diferente. Cada vez mais vemos discussões sobre o que seria adequado ou não para a “criança”. As tentativas de compreender as fases do desenvolvimento mental e emocional de crianças e adolescentes - que tem, como maiores contribuições, os estudos do suíço Jean Piaget (1896-1980) e do russo Lev Semyonovich Vygotsky (1896-1934) - é também resultado de uma tentativa ainda maior: a de compreender a nós mesmos como seres humanos mutáveis que têm âmbitos internos (estruturas psíquicas existentes no sujeito) e externos (relações sociais) em constante movimento recíproco.Mas é sempre bom lembrar que nem sempre a nossa visão - de adultos observadores também múltiplos - é suficiente para compreender a pluralidade de fatores que complicam as tentativas de análises unificadoras que buscam simplificar a realidade. Cabe a nós tentar entender - para fins didáticos e como “observadores múltiplos” que somos - alguns fatores que permeiam a fruição de crianças, nas diversas faixas etárias, de uma forma geral, mas sempre entendendo que os fatores específicos existem e devem ser levados sempre em consideração.Outra questão importante no estudo da infância é a nomenclatura, ou seja, quais nomes utilizamos quando o assunto é a criança. Maria Cristina Soares de Gouvea lembra, em seu ensaio “A criança e a linguagem: entre palavras e coisas”, que a palavra “infante” tem relação tanto com a questão da linguagem (a incapacidade de falar) quanto com a questão da alteridade (o outro como um ser diferente): “Infante, na sua raiz etimológica, significa: ‘Aquele que não sabe falar’. Ao mesmo tempo, bárbaros, etimologicamente, são aqueles que não emitem sons humanos” (Gouvea, 2007, p. 111). Essa “não fala” não é propriamente a fala em si, mas uma “voz” ativa na sociedade, com poder de decisão e discernimento. Já a palavra “criança” (do latim “creantia”) remete à “criação”, ao sentido de formação, ou seja, à pessoa que ainda está no processo de formação/criação, um ser humano que ainda não está pronto.

REFERÊNCIAS:
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
CAMAROTTI, Marco. A linguagem no teatro infantil. 2. ed. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2002.
GOUVEA, Maria Cristina Soares de. A criança e a linguagem: entre palavras e coisas. In: PAIVA, Aparecida; MARTINS, Aracy Alves; PAULINO, Graça; CORRÊA, Hércules; MACHADO, Maria Zélia Versiani (org.). Literatura: saberes em movimento. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 111-136.
LOMARDO, Fernando. O que é teatro infantil. São Paulo: Brasiliense, 1994.
PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. Tradução Maria Alice Magalhães D’Amorim e Paulo Sérgio Lima Silva. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
SEGUNDO, Rinaldo. A invenção da infância: pressuposto para a compreensão do Direito da Criança e do Adolescente. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 178, 31 dez. 2003. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2007.
VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

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