sábado, 25 de outubro de 2008

Teatro Infantil: entre os aspectos e a comunicação

Existem certos aspectos que são comuns em quase todos os espetáculos infantis, especialmente aqueles que cumprem temporadas em casas teatrais comerciais, a saber: duração aproximada de 45 a 60 minutos; linguagem corporal ágil e estilizada, com jogos de cena geralmente lúdicos; textos falados relativamente curtos em relação ao texto cênico total da peça; humor sempre presente, mesmo em temas dramáticos; músicas pontuando grande parte das cenas; figurinos e cenografia estilizados e coloridos; e em caso de palco à italiana, iluminação bastante colorida (poucos jogos de claro e escuro, com raras exceções). Ou seja, existem características específicas na produção do teatro infantil contemporâneo que o senso comum reconhece como sendo próprios de uma linguagem adequada para as crianças. O que, obviamente, não significa dizer que espetáculos que não se enquadrem nessas características não agradem a determinadas faixas etárias. Além disso, os aspectos que concernem à atuação cênica são, em muitos casos, movidos por paradigmas de estereótipos de um universo pseudo-infantil que nem sempre tem a ver com o universo diegético acionado pela peça.O teatro infantil tem algumas especificidades de execução, mas a obediência a uma certa lógica constante a respeito dos aspectos anteriormente citados não garante o sucesso - nem mesmo o fracasso - de uma peça infantil. Segundo Paulo Freire, pedagogo brasileiro, é preciso “saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 2007, p. 47). Analogamente, o ator, assim como o educador, deve travar um diálogo com o espectador através de uma relação baseada no respeito ao conhecimento do outro, em vez de “depositar” conhecimentos estéreis em suas cabeças “neutras”, até porque não existem cabeças neutras, nem de adultos nem de crianças. Além disso, é preciso não temer a relação de “afetividade” e o “querer bem” nas questões pedagógicas ou artísticas.Esta abertura ao querer bem não significa, na verdade, que, porque professor, me obrigo a querer bem a todos os alunos de maneira igual. Significa, de fato, que a afetividade não me assusta, que não tenho medo de expressá-la. Significa esta abertura ao querer bem a maneira que tenho de autenticamente selar meu compromisso com os educandos, numa prática específica do ser humano. Na verdade, preciso descartar como falsa a separação radical entre seriedade docente e afetividade. (FREIRE, 2007, p. 141).Talvez esteja aí o mais poderoso “aspecto” do teatro infantil: a relação dialógica entre ator e público pautada no respeito ao conhecimento do outro e no afeto. Todos os jogos lúdicos, cores, musicalidade, humor e sagacidade do texto falado e cênico só funcionam se o ator souber utilizar isso em prol de um diálogo orgânico e verdadeiro com seu público. Para tanto, certas especificidades de recepção das crianças têm de ser levadas em questão, como, por exemplo, a relação com estruturas concretas de linguagem e as diferenças de ordem culturais, sociais, econômicas e relacionais. Não que os atores tenham que fazer um espetáculo diferente para cada criança, mas, quando o diálogo realmente existe, a relação ator-adulto e espectador-criança necessita de cuidados específicos e os atores têm que saber lidar com isso desde o processo da gênese do espetáculo.

REFERÊNCIAS:
BRILHANTE, André. O conhecimento em jogo no teatro para crianças. In: TAVARES, Renan (org.). Entre coxias e recreios: recortes da produção carioca sobre o ensino do teatro. São Caetano do Sul: Yendis, 2006. Cap.3, p. 77-96.
CAMAROTTI, Marco. A linguagem no teatro infantil. 2. ed. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática acadêmica. 25ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
LOMARDO, Fernando. O que é teatro infantil. São Paulo: Brasiliense, 1994.
MERISIO, Paulo. A linguagem do teatro infantil. In: MACHADO, Irley et al. Teatro: ensino teoria e prática. Uberlândia: EDUFU, 2004. Cap.3, p. 131-138.
PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. No reino da desigualdade: teatro infantil em São Paulo nos anos setenta. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 1991.
*Foto de Gyuliana Duarte: Apresentação do espetáculo infantil "Caça Contos" da Organização Caça Contosno Centro Pedagógico/UFMG (Belo Horizonte/MG, maio de 2006).

Idéias de Infâncias

A “infância” é uma categoria social que vem ganhando contornos e espaços diferentes ao longo dos séculos nas sociedades organizadas do mundo inteiro. Em sociedades da Europa da Idade Média, por exemplo, não havia grandes distinções sobre espaços públicos para crianças e sua educação era responsabilidade dos pais (geralmente das mães) e das demais pessoas que conviviam com elas. Não havia escolas nem áreas públicas dedicadas às diferentes faixas etárias que observassem as necessidades específicas de fruição e atividades sócio-culturais. Os trabalhos e divertimentos não tinham maiores especificidades no quesito “faixa etária”, e mesmo para aqueles que continham necessidades específicas relativas a força física ou a conteúdos de interesses mais “adultos” (como divertimentos sexuais, jogos de azar, lutas etc.) não havia algo que impedisse que crianças participassem dessas atividades, caso elas conseguissem executar tais tarefas, evidentemente. Inclusive, a idéia de divisões de fases era algo em que não se pensava na época. Por exemplo, não havia na língua francesa, até o século XVIII, termos que diferenciasse a infância da adolescência ou da juventude, como lembra Rinaldo Segundo, em seu artigo “A invenção da infância”:A palavra "enfant" (criança) representava, ambos, crianças ou rapazes. Isso pode ser explicado: não era o critério biológico que distinguia as pessoas, sendo que "ninguém teria a idéia de limitar a infância pela ‘puberdade’..." (ARIÈS, 1981, p. 42). A dependência econômica marcava a idéia de infância: "Só se saía da infância ao se sair da dependência" (idem). Daí a explicação à algumas imagens e relatos do século XVI, segundo os quais, aos 24 anos, a criança é forte e virtuosa. (SEGUNDO, 2003, § 11).Em outras sociedades até mais antigas, como a chinesa ou a grega, por exemplo, existia a figura do mestre ou preceptor, ou seja, alguém que cuidava para que a criança aprendesse conteúdos e atividades que as fizessem úteis à sociedade. Evidentemente eram poucos (só os filhos de pessoas de posse e/ou importância) que tinham essa “atenção específica”, pois a grande maioria vivia no meio dos adultos sem maiores “atenções especiais” além da educação familiar, como aprender o ofício dos pais para poderem continuar sobrevivendo, por exemplo. É importante frisar que, mesmo na China ou na Grécia antiga, não havia atividades de divertimento especificamente infantis, o que também não significa que não houvesse certas atividades que recebiam um público maior de crianças, como as apresentações de bonecos populares chineses (por volta do século III A.C.) ou a comédias farsescas gregas (século V A.C.).É certo que, em qualquer período, qualquer atividade artística pode cair no gosto de crianças, independente do interesse inicial do artista realizador da obra, por alguma característica involuntária, principalmente pelo fato de que não existe uma “criança ideal”, e sim crianças, todas com suas particularidades específicas. Cada pessoa, independente da faixa etária, tem características e gostos pessoais diferentes por diversos motivos: sociais, culturais, relacionais etc. No entanto, existem fatores que diferenciam diversos grupos sociais que são separadas por vários fatores e a idade é uma delas.Na sociedade européia ocidental, no período do renascimento, quando a cultura passou a ser menos da igreja e um pouco mais da sociedade civil, tentativas de especificar atitudes frente às crianças tornavam-se mais urgentes, até mesmo para limitar o espaço da criança no “mundo adulto” e também educar esse ser que era visto mais como um “futuro adulto” do que como pessoa em si. É nessa situação que os tratados sobre a educação da puerícia (infância) começam a aparecer. O historiador francês Philippe Ariès (1914-1984), em seu livro “História Social da Criança e da Família”, de 1960, faz um panorama de alguns desses tratados e de que como era vista a infância na Europa (especificamente na França) na Idade Média - sem maiores distinções entre a infância e a idade adulta - e a partir do final do século XVI – quando a necessidade de uma educação burguesa se fazia cada vez mais presente para a manutenção do estado de dominação da civilização européia ocidental. Ariès foi a grande referência de um novo campo historiográfico, que ficou conhecido como “história da infância” e gerou diversos trabalhos posteriores de outros estudiosos dessa área, pois, além de trazer à tona uma discussão sobre a história da infância na Europa – desde a Idade Média, passando pelos tratados filosóficos e manuais de educação e etiqueta da infância (séculos XVI a XVIII) até os estudos do século XIX e princípio do XX – ele cria uma base na qual historiadores, psicólogos, sociólogos e educadores irão se apoiar (inclusive os críticos) para pensar a infância contemporânea.Nos fazeres e na fruição artística também não é diferente. Cada vez mais vemos discussões sobre o que seria adequado ou não para a “criança”. As tentativas de compreender as fases do desenvolvimento mental e emocional de crianças e adolescentes - que tem, como maiores contribuições, os estudos do suíço Jean Piaget (1896-1980) e do russo Lev Semyonovich Vygotsky (1896-1934) - é também resultado de uma tentativa ainda maior: a de compreender a nós mesmos como seres humanos mutáveis que têm âmbitos internos (estruturas psíquicas existentes no sujeito) e externos (relações sociais) em constante movimento recíproco.Mas é sempre bom lembrar que nem sempre a nossa visão - de adultos observadores também múltiplos - é suficiente para compreender a pluralidade de fatores que complicam as tentativas de análises unificadoras que buscam simplificar a realidade. Cabe a nós tentar entender - para fins didáticos e como “observadores múltiplos” que somos - alguns fatores que permeiam a fruição de crianças, nas diversas faixas etárias, de uma forma geral, mas sempre entendendo que os fatores específicos existem e devem ser levados sempre em consideração.Outra questão importante no estudo da infância é a nomenclatura, ou seja, quais nomes utilizamos quando o assunto é a criança. Maria Cristina Soares de Gouvea lembra, em seu ensaio “A criança e a linguagem: entre palavras e coisas”, que a palavra “infante” tem relação tanto com a questão da linguagem (a incapacidade de falar) quanto com a questão da alteridade (o outro como um ser diferente): “Infante, na sua raiz etimológica, significa: ‘Aquele que não sabe falar’. Ao mesmo tempo, bárbaros, etimologicamente, são aqueles que não emitem sons humanos” (Gouvea, 2007, p. 111). Essa “não fala” não é propriamente a fala em si, mas uma “voz” ativa na sociedade, com poder de decisão e discernimento. Já a palavra “criança” (do latim “creantia”) remete à “criação”, ao sentido de formação, ou seja, à pessoa que ainda está no processo de formação/criação, um ser humano que ainda não está pronto.

REFERÊNCIAS:
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
CAMAROTTI, Marco. A linguagem no teatro infantil. 2. ed. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2002.
GOUVEA, Maria Cristina Soares de. A criança e a linguagem: entre palavras e coisas. In: PAIVA, Aparecida; MARTINS, Aracy Alves; PAULINO, Graça; CORRÊA, Hércules; MACHADO, Maria Zélia Versiani (org.). Literatura: saberes em movimento. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 111-136.
LOMARDO, Fernando. O que é teatro infantil. São Paulo: Brasiliense, 1994.
PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. Tradução Maria Alice Magalhães D’Amorim e Paulo Sérgio Lima Silva. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
SEGUNDO, Rinaldo. A invenção da infância: pressuposto para a compreensão do Direito da Criança e do Adolescente. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 178, 31 dez. 2003. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2007.
VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1987.